Tite, uma figura campeã de tudo por clubes e com duas Copas do Mundo no retrovisor, é meio que o máximo possível a se tentar no momento
Para um treinador ser unanimidade no comando do Flamengo ele precisa fazer o time jogar bem, entender da identidade do clube, tirar o melhor e se relacionar bem com suas grandes estrelas, empolgar um Maracanã em tarde de domingo, ganhar os principais títulos e permitir o arrepio da eternidade. Ele precisa repetir o que o rubro-negro viveu por algumas semanas do segundo semestre de 2019, aquela sensação de girar a catraca para assistir em primeira mão e de forma privilegiada o museu sendo construído, o pôster rodando para ser pendurado na parede, a silhueta modelada em campo pronta para virar estátua. Vencer, convencer e sonhar.
A régua é muito alta, quase inalcançável. Não bastou Rogério Ceni ser campeão brasileiro, Renato Gaúcho perder uma Libertadores num lapso de um de seus melhores jogadores à época ou mesmo Dorival Júnior ganhar a América numa naturalidade de Taça Guanabara. Muito menos as tentativas estrangeiras de revirar o plano tático para lá e para cá, marcar posição, mexer nas convenções. Sempre falta alguma coisa, com o presente preso na nostalgia cruel de quatro anos atrás.
O novo técnico do Flamengo, Tite, tem o tamanho para libertar o clube dessa projeção de um moto-contínuo da Gávea. É como se Gerson, Everton Ribeiro, Arrascaeta, Bruno Henrique e Gabriel pudessem seguir reutilizando a própria combinação que criaram há quatro anos, tabelando semana sim, semana também como fizeram na goleada de cinco sobre o Grêmio, no totó no Corinthians, no atropelamento sobre o Palmeiras, na estrela de virar no final uma decisão diante do River Plate. Parecia tão para sempre.
Retomar essa autoestima depende de uma referência à beira do campo que dê conta de arranjar a equipe para as grandes partidas, mediar a recuperação do futebol de nomes históricos na casa e, mais do que isso, ficar perto dessa megalomania flamenguista que nem o 4 a 0 sobre o Vélez numa semifinal de Libertadores na Argentina cravando um centroavante no Catar conseguiu convencer para respaldar o trabalho do último técnico campeão. Uma figura campeã de tudo por clubes e com duas Copas do Mundo no retrovisor é meio que o máximo possível a se tentar no momento.
Tite ainda é o principal treinador brasileiro em atividade. Seus dois últimos trabalhos em clubes, o Corinthians 2010-13 e o Corinthians 2015-16, deram em grandes títulos, com a soberba atuação valendo o Mundial contra o Chelsea no Japão e o ótimo desempenho em sua mais recente conquista nacional, o time de Elias, Jadson e Renato Augusto. O trabalho na seleção é elogiável, montando e remontando a equipe sem acomodação, ainda que suas ideias para as duas edições de Copa do Mundo não tenham se mostrado suficientemente eficazes para passar pelo jogo que tanto se preparou, o encontro com o europeu na quinta partida, frustrado ao sair atrás da Bélgica e tomar um gol da Croácia no fim. A impressão é que ele se esforçou no campo das ideias para encher a amarelinha de possibilidades, mas duas vezes não tirou o melhor possível quando chegaram os grandes dias. Para quem tinha tanto tempo no cargo, que jogo esquisito contra Camarões, que primeira parte inaceitável enfrentando os croatas.
Acredito que Tite possa ter um bom impacto inicial no Flamengo, pelo conhecimento que tem dos jogadores e do ambiente do futebol brasileiro além da sensibilidade em identificar rapidamente o que não está dando certo em campo (chocante como ele apagou o time de Dunga em minutos na estreia no Equador, em 2016). Ele tem o lastro de quem acompanha há muitos anos essa turma, somado à estatura de ser um nome que tem peso para firmar um trabalho de longo prazo, diferente dos últimos que sempre pareceram estar semanalmente à prova de merecer chefiar o principal elenco do continente.
Cada caso é um caso, e só as semanas de relação poderão mostrar se há um casamento entre Tite e esse elenco nessa altura do desgaste, do momento dos jogadores e da perspectiva da temporada, entre a reta final de Brasileiro e a cabeça em ajeitar a casa para 2024. Mas o técnico já foi e voltou com muita gente do vestiário flamenguista, como as convocações de Santos, a confiança em Rodrigo Caio, a chance e os elogios a David Luiz ainda antes do Mundial da Rússia, o carinho de sempre por Filipe Luís, as oportunidades a Gerson, Bruno Henrique e até Pablo, o espaço para Cebolinha brilhar numa Copa América, as tentativas com Gabigol, a viagem ao Catar com Everton Ribeiro e Pedro na concorrida lista dos 26. O tempo passou, mas já houve muito estudo e detalhamento sobre cada um desses caras.
São dez dias de trabalho até o campeonato voltar, 12 jogos daqui até o Natal e 11 pontos de distância para o líder Botafogo. Impossível garantir que Tite fará história em seu novo clube, mas dá para apostar que não repetirá o baixo astral de Vitor Pereira e Jorge Sampaoli, nem será espirrado pelo fetiche a um estrangeiro qualquer como foram Renato Gaúcho e Dorival Júnior. Para o Flamengo não basta ser grande, é preciso parecer ser o maior de todos o tempo todo. Nisso, Tite parte na vantagem de corresponder à mania de imponência que paira sobre o clube. E, quem sabe, finalmente projetar um Flamengo do futuro, não uma corrida contraproducente para voltar à festa que tomou o Rio de Janeiro em novembro de 2019.
Por Trivela
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