O governo e a cúpula do Congresso têm, neste último caso, um pacote de cerca de R$ 10 bilhões que distribuem de acordo com as conveniências políticas do momento
Na regra geral, cada deputado ou senador decide por conta própria e dentro de gabinetes o direcionamento das bilionárias verbas das emendas parlamentares -R$ 46,3 bilhões previstos para 2023, cerca de um quarto de tudo o que o governo federal tem para uso livre.
A Folha identificou ao menos 11 deputados e senadores que estabelecem alguma espécie de regra pública para definição da distribuição da totalidade ou de parte da verba, os chamados "editais de emendas" -sendo que alguns abrem votação popular para a escolha de parte dos beneficiados.
Em geral, esses parlamentares integram partidos minoritários da esquerda e da direita.
São os deputados Adriana Ventura (Novo-SP), Camila Jara (PT-MS), Gilson Marques (Novo-SC), Marcel Van Hattem (Novo-RS), Sâmia Bonfim (PSOL-RJ), Tabata Amaral (PSB-SP), Túlio Gadêlha (Rede-PE) e Vitor Lippi (PSDB-SP), além dos senadores Alessandro Vieira (MDB-SE), Professora Dorinha Seabra (União Brasil-TO) e Rodrigo Cunha (Podemos-AL).
O número representa cerca de 2% do total de congressistas, que é de 594.
Em conversas com parlamentares que usam e que não usam o modelo, algumas causas são apontadas para a resistência em se adotar critérios, transparência e participação popular na aplicação das verbas.
Entre eles, o risco de o parlamentar não conseguir direcionar dinheiro do orçamento para redutos eleitorais em que tenha mais perspectiva de voto, além do argumento de que, como representantes dos cidadãos, já conseguiram nas urnas o aval para direcionar o dinheiro.
"O parlamentar tem que atender a sua base. A consulta popular ocorreu em 2022 [na eleição]. Se eu faço a consulta e sou obrigado a dar R$ 2 milhões para uma cidade que me deu só 2.000 votos e R$ 100 mil para uma cidade que me deu 20 mil votos, o que vou dizer para essa última cidade?", afirma o deputado Joaquim Passarinho (PL-PA).
O parlamentar diz que teve neste ano o poder de direcionar cerca de R$ 44 milhões em emendas (R$ 32 milhões da modalidade individual, mais R$ 12 milhões da sua fatia na parte que cabe à bancada do Pará) e que fez a divisão rigorosamente na proporção da votação que teve.
"Prefeitos me procuram às vezes, e eu saco o mapa [de votação] e vejo. Aí digo: 'Só tive 80 votos lá?' Na hora da eleição ele fechou com outro candidato [a deputado], agora quer emenda? Não dá."
Passarinho dá como exemplo a cidade de Brejo Grande do Araguaia (PA), onde ele diz ter tido uma boa votação no passado. Em 2022, porém, obteve resultado bem inferior devido, segundo ele, a aliança do prefeito com outros candidatos a deputado federal.
"Ninguém se elegeu, apenas eu. Resultado: estão há dois anos sem emenda. Só R$ 100 mil que mandei para lá."
A lógica de distribuição de emendas tende, de fato, a privilegiar cidades em que os parlamentares têm seus redutos mais consolidados, em detrimentos de outras, como a Folha mostrou recentemente em diferentes reportagens.
Locais com escassez de água no sertão nordestino, por exemplo, foram deixados de lado na entrega de caixas-d'água no ano passado, enquanto equipamentos ficaram estocados em redutos de líderes do Congresso.
Em 2023, cada deputado teve R$ 32 milhões em emendas individuais (senadores, R$ 59 milhões), valores que têm execução obrigatória e que, em alguns casos, podem mais que dobrar em decorrência das emendas de bancadas, também impositivas, e das chamadas "emendas extras".
O governo e a cúpula do Congresso têm, neste último caso, um pacote de cerca de R$ 10 bilhões que distribuem de acordo com as conveniências políticas do momento.
Adriana Ventura (Novo-SP) usa o edital de emendas desde 2019 e listou critérios que, em sua visão, evitam que as emendas virem moeda de troca eleitoral. Entre eles, capacidade de execução da entidade que receberá a verba, experiências anteriores de uso das emendas, número de pessoas e regiões atendidas.
"Do jeito que hoje é aplicado, o parlamentar tem total liberdade para mandar como quiser, para onde quiser, mesmo que não esteja vinculado à política pública. Eu acho isso péssimo. Então a gente usa o edital para fugir um pouco dessa armadilha", afirma.
A assessoria da deputada Tabata Amaral, que também usa o mecanismo desde 2019, enviou nota em que diz que o modelo dá transparência à indicação de emendas, "que historicamente é feita em troca de apoio político e sem o acompanhamento dos recursos empregados".
"O nosso processo é um método concreto e transparente e todas as propostas passam por análise técnica, por uma votação popular e acompanhamento posterior. Por isso mesmo acreditamos que, conforme essa iniciativa ficar mais conhecida, a sociedade poderá cobrar para que cada vez mais outros deputados também implementem esse processo."
O deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP), que assim como Tabata é pré-candidato à Prefeitura de São Paulo, disse não usar o modelo porque já tem um trabalho consolidado com vários movimentos sociais, que vem de longe.
"As emendas do nosso mandato acabam atendendo esse trabalho social que não é de hoje, esse trabalho que nós já temos há muito tempo, são comunidades e entidades que a gente conhece, que são sérias e que têm as suas demandas tanto de investimento como de custeio", afirmou.
A Folha acompanhou na última terça-feira (31) reunião da bancada de deputados federais e senadores do Rio de Janeiro para definir a distribuição das emendas de bancada.
O encontro, realizado em uma das comissões da Câmara, foi marcado por diversas dúvidas e divergências entre eles sobre as áreas e os beneficiados pelas emendas. A decisão ficou para reuniões futuras.
Uma espécie de coordenadora da bancada para assuntos de emendas, a deputada Laura Carneiro (PSD-RJ) disse que, no seu caso, o edital de emendas não é efetivo.
"Depende do mandato de cada deputado. Abrir uma votação? Nossa Senhora, lá no meu gabinete, sem votação, já é uma pilha assim [faz gesto com as mãos indicando um calhamaço de papel], imagina com votação?"
ENTENDA EM 3 PONTOS QUANTO CADA CONGRESSISTA PODE DIRECIONAR EM EMENDAS AO ORÇAMENTO
1. Em 2023, cada deputado teve R$ 32 milhões em emendas individuais. No caso de senadores, esse valor foi de R$ 59 milhões por parlamentar.
2. Os valores para 2024 ainda estão em discussão no Congresso, mas a proposta original é que esses valores subam para R$ 38 milhões e R$ 70 milhões, respectivamente.
3. Além das emendas individuais, os parlamentares também dividem entre si as emendas de bancadas estaduais (impositivas) e emendas extras (distribuídas e liberadas a critério do governo e da cúpula do Congresso), o que, em alguns casos, pode dobrar ou mais que dobrar esse valor.
VEJA A CRONOLOGIA DAS EMENDAS PARLAMENTARES
Antes de 2015
- A execução das emendas parlamentares era uma decisão política do governo, que poderia ignorar a destinação apresentada pelos congressistas.
2015
- A emenda constitucional 86/2015 estabeleceu a execução obrigatória das emendas individuais, o chamado orçamento impositivo, com algumas regras.
2019
- O Congresso ampliou o orçamento impositivo ao aprovar a emenda constitucional 100, que tornou obrigatórias também as emendas de bancadas estaduais
- O Congresso emplacou um valor expressivo para as emendas feitas pelo relator-geral do Orçamento, R$ 30 bilhões para o ano seguinte
- Jair Bolsonaro vetou a medida e o Congresso só não derrubou o veto mediante acordo que manteve R$ 20 bilhões nas mãos do relator-geral
- Bolsonaro também deu uma autonomia completa para a cúpula do Congresso decidir para onde todo esse montante seria destinado
2020
- Com o acordo de 2019, feito por Bolsonaro para manter uma base de apoio no Congresso, o valor destinado às emendas deu um salto e chegou a R$ 44 bilhões.
2022
- Durante a campanha eleitoral, Lula criticou o modelo de negociação com o Congresso e prometeu sepultá-lo, mas, na prática, acabou não fazendo isso
O STF (Supremo Tribunal Federal) declarou inconstitucional a emenda de relator. A verba foi rebatizada e transferida ao orçamento dos ministérios, mas o governo Lula driblou a decisão e manteve o uso político dos recursos -há, em 2023, R$ 9,8 bilhões reservados para esse tipo de negociação
2023
- Cada deputado teve R$ 32 milhões em emendas individuais (senadores, R$ 59 milhões), valores que têm execução obrigatória e que em alguns casos podem mais que dobrar em decorrência das emendas de bancadas e das "emendas extras"
POR FOLHAPRESS
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